domingo, 23 de junho de 2024

O império em declínio está a afundar-se nas flores do tapete... de bombas

 


 23 de Junho de 2024  Robert Bibeau  

O futuro Novus Ordo Seclorum – Temos de mudar, não há escolha!

Por Alastair Crooke – 3 de Junho de 2024 – Fonte Strategic Culture


Durante uma visita a Oxford há algumas semanas, Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia, fez uma observação interessante (segundo Walter Münchau): "A diplomacia é a arte de gerir dois pesos e duas medidas". Münchau ilustrou a hipocrisia inerente à diplomacia ao contrastar o entusiasmo com que os líderes da UE apoiaram a decisão do TPI quando este solicitou um mandado de captura contra Putin, no ano passado, e "a recusa em apoiá-lo – quando atinge um membro da sua equipa" (ou seja, Netanyahu).

O exemplo mais flagrante deste duplo "pensamento" diz respeito ao seu correlato – a "gestão" ocidental das realidades criadas. Elabora-se um duplo padrão – uma "narrativa" onde "ganhamos" – e depois contrasta-se com uma narrativa onde "falham".

Fabricar narrativas de vitória (em vez de vitória real) pode parecer bastante inteligente, mas a incerteza que cria pode ter consequências não intencionais e potencialmente desastrosas. Por exemplo, as ameaças deliberadamente ofuscadas do Presidente Macron de enviar forças da NATO para servir na Ucrânia – que só contribuíram para que a Rússia se preparasse para uma guerra mais ampla contra toda a NATO, acelerando as suas operações ofensivas.

Em vez de ter um efeito dissuasor – como Macron provavelmente pretendia – isso deu origem a um adversário mais determinado, com Putin a avisar que a Rússia mataria qualquer "invasor" da NATO. Afinal, não era tão inteligente...

Tomemos um exemplo mais concreto: a resposta do Presidente Putin a uma pergunta da imprensa durante a sua visita ao Uzbequistão: "Estes representantes dos países da NATO, especialmente na Europa, (...) primeiro provocaram-nos no Donbass; levaram-nos pelo nariz durante oito anos, enganaram-nos deliberadamente a acreditar que eles [o Ocidente] queriam resolver as coisas pacificamente – apesar da sua tentativa aparentemente contraditória de forçar a situação 'para a paz' – por meios armados."

"Enganaram-nos durante o processo de negociação, continuou Putin, "tendo a priori decidido secretamente derrotar a Rússia no campo de batalha – e, assim, infligir-lhe uma derrota estratégicaEsta escalada constante pode ter consequências graves (Putin provavelmente está a referir-se a uma troca de mísseis que terminaria – até – em armas nucleares.) "Se estas graves consequências ocorrerem na Europa, como se comportarão os Estados Unidos dada a paridade das nossas armas estratégicas? Querem um conflito mundial? É difícil dizer... Vamos ver o que acontece a seguir", concluiu. (Esta é uma paráfrase da longa sessão de perguntas e respostas do Presidente Putin.)

Naturalmente, alguns no Ocidente dirão que esta é apenas uma "história" russa e que o Ocidente sempre agiu razoavelmente em resposta às acções de Moscovo.

O "pensamento racional" e a razoabilidade são pretensiosamente considerados como as qualidades definidoras do Ocidente (herdadas de Platão e Aristóteles). No entanto, tentar usar a racionalidade secular como a ferramenta analítica predominante para a compreensão dos eventos geopolíticos pode ser um erro. De facto, um instrumento tão limitado obriga-nos a amputar brutalmente a dinâmica mais profunda da história e do contexto, o que corre o risco de distorcer a análise e conduzir a respostas políticas erradas.

Sejamos claros: o que conseguiu esta diplomacia enganadora? Resultou na total desconfiança de Moscovo em relação aos líderes europeus e no seu desejo de não ter mais nada a ver com eles.

É "racional" deixar actores como Putin questionarem se a Rússia está realmente a enfrentar um Ocidente determinado a "infligir-lhe uma derrota estratégica" ou se Washington quer simplesmente criar uma "narrativa vencedora" antes de Novembro?

Putin salientou (na conferência de imprensa) que as armas de longo alcance de alta precisão baseadas na Ucrânia (como o ATACMS) são preparadas com base em "inteligência e reconhecimento espacial", que são depois automaticamente traduzidos em parâmetros adequados para os mísseis alvo (os operadores podem nem sequer perceber em que coordenadas entram como alvo).

Esta complexa tarefa de preparar um míssil de alta precisão, no entanto, está a ser preparada não por militares ucranianos, mas por representantes dos países da NATO, sublinhou Putin.

Putin diz: "Vocês, europeus, que fornecem e utilizam essas armas, já estão em guerra com a Rússia”. Não podem afirmar, por um lado, que uma vez transportadas as vossas munições, elas se tornam magicamente "ucranianas", enquanto "dizem", por outro lado, que a NATO - os seus recursos de vigilância, os seus técnicos ISR e os seus manipuladores de mísseis - não significa "guerra com a Rússia".

Nas suas respostas explícitas, Putin lançou um aviso claro ao Ocidente: estes representantes dos países da NATO - especialmente na Europa, especialmente nos países mais pequenos - devem estar conscientes "daquilo com que estão a brincar".

E, no entanto, na Europa, a ideia de atacar o interior da Rússia é apresentada como totalmente racional, apesar de sabermos que esses ataques à Rússia não irão alterar o curso da guerra. Claramente, Putin está a dizer que a Rússia só pode interpretar as declarações e acções ocidentais como uma intenção de guerra mais ampla.

Provavelmente, a mesma "dupla narrativa" também se aplica a Israel. Por um lado, Netanyahu e o seu governo são apresentados como uma entidade messiânica, que persegue um apocalipse bíblico. Por outro lado, o Ocidente afirma que está simplesmente a seguir o seu próprio entendimento racional do que é do interesse de Israel, nomeadamente uma solução de dois Estados.

Pode ser desconfortável dizê-lo, mas o zeitgeist "não-secular e não racionalista" de Netanyahu provavelmente reflecte uma pluralidade de opiniões hoje em Israel. Noutras palavras, quer goste ou não – e quase o mundo inteiro não gosta – não é menos autêntico. É o que é – e, por isso, de pouco vale elaborar políticas estrictamente seculares que simplesmente ignorem esta realidade (a menos que haja vontade de mudar radicalmente esta realidade – ou seja, de impor um Estado palestiniano pela força).

A realidade é que um confronto está a formar-se no Médio Oriente. E na sua esteira – com ambos os lados exaustos – uma corrente política, ou uma mudança de zeitgeist (se Israel reconsiderasse os direitos especiais concedidos a um grupo populacional em detrimento de outro que vive numa terra compartilhada), poderia abrir um caminho mais produtivo para uma "solução", de uma forma ou de outra.

Também aqui, a insistência numa perspectiva secular e materialista convida a uma leitura errada do terreno e pode agravar a situação (empurrando Israel para a escalada maciça em que nos encontramos).

Quando Gantz, visto como uma alternativa possível e mais razoável a Netanyahu, convoca eleições antecipadas, fá-lo, escreve Roger Alpher no Haaretz, "para renovar o contrato entre o povo e o governo e mobilizar-se para uma segunda guerra de independênciaDe acordo com esta nova visão, Israel está no início de uma longa e sangrenta guerra pela sua sobrevivência."

Gantz não é um secularista, a sua mentalidade é religiosa... Quando acusa Netanyahu de introduzir segundas intenções no "santo dos santos", como ele diz, ou seja, considerações de defesa, ele está a expressar a sua crença religiosa na fé da nação. "O Estado é santo, o Estado acima de tudo."

"As suas diferenças de opinião com Netanyahu esbatem um amplo consenso – incluindo Yair Golan, Bezalel Smotrich, Yair Lapid, Avigdor Lieberman, Naftali Bennett, Yossi Cohen e o partido Likud com ou sem Netanyahu – de que a guerra é a coisa certa a fazer. O público israelita é um herói por causa da guerra. É durante as suas guerras que está no seu melhor: uma nação não tem maior elevação espiritual do que o amor ao sacrifício "carregando a maca", como dizem os israelitas.

Claramente, Gantz – como Netanyahu – não está no campo liberal e secular do Ocidente.

E é aqui que entra a noção de "gestão de dois pesos e duas medidas" de Josep Borrell: Poderão a Europa ou os Estados Unidos continuar a tolerar uma visão do mundo sionista tão "irracional", com todas as consequências negativas que isso implica para uma hegemonia americana cada vez mais instável?

Há uma certa "racionalidade" na visão de Netanyahu, mas ela não está enraizada na nossa ontologia mecanicista.

Talvez, também, as referências bíblicas de Netanyahu a Amalek (o povo que o rei Saul foi ordenado a aniquilar) toquem nos nervos ocidentais: não era suposto o Iluminismo científico pôr fim a esta "outra" ontologia? Será que isto recorda ao Ocidente os seus próprios "pecados" coloniais?

O Professor Michael Vlahos, que ensinou guerra e estratégia na Universidade Johns Hopkins e no Colégio de Guerra Naval dos EUA, e que foi Director do Centro de Estudos Estrangeiros no Departamento de Estado, argumenta que a América também é "uma religião" atormentada pelo apocalipse eternamente recorrente, e que a guerra é o seu "ritual de purificação":

"Os fundadores – os nossos 'criadores' – tinham imaginado mais do que uma nação... Eles também haviam esboçado o arco da história de uma jornada divinamente heroica, centrando os Estados Unidos como o culminar (a ser) da história. Tal é a narrativa sagrada da América. Desde a sua fundação, os Estados Unidos têm perseguido, com fervor religioso ardente, um apelo superior para redimir a humanidade, punir os ímpios e baptizar um milénio dourado na terra.

Enquanto França, Grã-Bretanha, Alemanha e Rússia vasculhavam o mundo em busca de novos colonatos e conquistas, a América manteve-se firme na sua visão única da missão de Deus como "Novo Israel de Deus".

Assim, entre todas as revoluções desencadeadas pela modernidade, os Estados Unidos declaram-se – nos seus próprios escritos – como pioneiros e desbravadores da humanidade. A América é a nação excepcional — o singular, o coração puro, o baptizador e o redentor de todos os povos desprezados e oprimidos: a "última e melhor esperança da terra".

O presidente Biden entregou este catecismo com precisão em West Point em 25 de Maio de 2024:

"Através das Forças Armadas dos EUA, estamos a fazer o que só a América pode fazer como nação indispensável, a única superpotência do mundo e a principal democracia do mundo: os Estados Unidos enfrentam os tiranos" em todo o mundo: "protegem a liberdade e a abertura".

"Estamos perante um homem [Putin] que conheço bem há muitos anos, um tirano brutal. Não podemos – nós – e não vamos –furtar-nos a isso."

Este é o catecismo da "religião civil americana", explica o professor Vlahos:

Para o mundo, pode parecer um ritual de vaidade egoísta, mas a religião civil é o artigo de fé nacional americano. É um texto sagrado, que ganhou forma retórica através daquilo que os americanos consideram ser a história.

A religião civil americana está indissociavelmente ligada à Reforma, ao cristianismo calvinista e à história sangrenta do protestantismo, tendo a narrativa sagrada da América sido moldada e baptizada no primeiro e segundo grandes despertares do país. Embora a sua leitura das Escrituras se tenha tornado secular na Era Progressista, a religião americana permaneceu ligada às suas raízes formativas. De facto, mesmo a nossa contemporânea "Igreja dos Acordados (WOKE)" não consegue escapar aos seus tubérculos cristãos calvinistas originais.

Desde 2014, uma nova seita emergente - "A Igreja dos Acordados" - tem procurado transformar e possuir plenamente a religião civil americana, para reinar como a sua fé sucessora. Ironicamente, o fervor do seu evangelismo canaliza o pós-milenarismo do Primeiro Grande Despertar, cujo messianismo foi codificado no Novus Ordo Seclorum (Nova Ordem dos Tempos).

Do que se trata? Hubert Védrine, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros francês e secretário-geral da presidência francesa do Presidente Mitterrand, afirma que o Ocidente (ou seja, também a Europa) – os "descendentes do cristianismo [latino]" – é "consumido pelo espírito do proselitismo".

"Que São Paulo 'vá e evangelize todas as nações' se tornou 'vá e espalhe os direitos humanos pelo mundo'... E que este proselitismo está extremamente enraizado no nosso ADN: "Mesmo os menos religiosos, os mais ateus, têm sempre isso em mente, [mesmo que] não saibam de onde vem."

Será este o cerne da questão? "Os Estados Unidos como o novo Israel" – segundo o professor Vlahos – que não podem ser olhados directamente nos olhos? No entanto, se nos olharmos ao espelho, é isso que vemos?

« Esta é, de longe, a questão mais profunda e mais importante que o Ocidente enfrenta, diz Védrine.

"Ele é capaz de aceitar a alteridade, de viver com o outro e de aceitá-lo como ele é... um Ocidente não proselitista, não intervencionista...", interroga-se.

Ao que responde: "Não há escolha. Absolutamente nenhuma" –

Não nos tornaremos os patrões do "mundo vindouro". Somos, portanto, obrigados a pensar além; somos forçados a considerar uma nova relação para o futuro entre o mundo ocidental e o famoso Sul Global.

E o que acontecerá se não a aceitarmos? Assim, continuaremos a ser marginalizados – cada vez mais isolados do resto do mundo – e cada vez mais desprezados pelo nosso sentido deslocado de superioridade.

(Novus Ordo Seclorum significa "nova ordem dos tempos" em latim. Esta frase é um dos dois lemas latinos no verso do Grande Selo dos Estados Unidos. O outro lema – Annuit coeptis, traduz-se por "Ele favorece (ou favoreceu) as nossas empresas".

Alastair Crooke

Traduzido por Wayan, revisto por Hervé, para o Saker Francophone em The Future Novus Ordo Seclorum – We Must Change, There Is No Choice! | O Saker francophone

 

Fonte: L’empire en déclin s’enfarge dans les fleurs du tapis…de bombes – les 7 du quebec

Este artigo foi traduzido para Língua Portuguesa por Luis Júdice




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