quarta-feira, 12 de junho de 2024

O primo António Praia

 

Palácio dos Viscondes  da Praia em Ponta Delgada, São Miguel, Açores

O texto “O primo António Praia” é de uma qualidade surpreendente. Analisa um vasto período histórico da história do Arquipélago dos Açores e fá-lo de forma inteligente.

Aproveitando uma homenagem a um primo do autor – o camarada Pedro Pacheco, um ilustre comunista e internacionalista açoriano, que muito me honra ter como camarada -, assume a forma de um depoiamento que ilustra a intervenção política que o mesmo teve em diferentes circunstâncias, contextualizando históricamente esse percurso.

Confesso que não é tema que domine, mas entendo que se baseie no método de análise materialista dialéctico. E, sobretudo, admiro o facto de, a forma como está escrito, suscitar em mim – e creio que em muitos mais “camaradas e não camaradas”- interesse em mergulhar mais aprofundadamente nas questões que coloca.


Luis Júdice


O primo António Praia

 

O primo António Praia – é assim que o conheci e é assim que dele falo – tinha desde o berço a contradição que o acompanhou toda a vida.

É bom não esquecer quem foi o nosso comum avô Duarte Borges, 1º Visconde da Praia, assim como Gaspar Dias, de quem Duarte Borges era descendente.

Gaspar Dias, apodado de cristão-novo, e Duarte Borges, financiador da revolução burguesa nos Açores e continente português.

A propósito deste lembro-me de um dito do arqueólogo Dr Manuel Sousa de Oliveira, morador também no Bom Despacho - onde Gaspar Dias prometera no século XVII, pelo bom despacho real, que só ocorreu depois da sua morte, erguer ermida, hoje desaparecida, e casa, que conheci em ruína e que o primo António Praia em boa hora decidiu reconstruir e habitar –, “Puseste o marco onde te disse? Pus, sr visconde. Alguém reclamou? Não sr visconde! Então põe mais além!”. O visconde em causa podia ser outro, eram poucos, mas havia-os; no entanto não deixa de ser expressivo de uma época de passagem dos baldios para propriedade privada em São Miguel, coisa ainda por estudar!

Convivi muito pouco com o primo António Praia pois ele viveu mais no continente do que aqui. Mas havia uma grande amizade entre ele e o meu tio Jacinto – ambos tiveram em Lisboa no Colégio Infante Sagres Agostinho da Silva como professor! - e memórias de grande intimidade transmitidas pela geração da minha avó Leonor. A sua mãe, a minha bisavó e madrinha Maria José, passava o verão na que depois foi sua casa com um bonito jardim em frente ao Parque, hoje Terra Nostra, mas na altura propriedade herdada pelo filho mais velho do visconde, António Borges de Medeiros. Quando íamos aos sábados para casa dos meus avós Eduardo e Leonor, nas Laranjeiras, a minha avó tinha muitas vezes para o lanche o que chamava de “bolinhos do Tio Marquês”, de que gostávamos muito – que depois pude perceber serem os conhecidos scones da cozinha inglesa.

Os avós, e o pai do primo António Praia herdou em parte, tinham por via de casamentos palácios e extensos bens fundiários no território continental secundarizando tanto quanto julgo o que era seu aqui na ilha. De tal modo que só me lembro do irmão Luís, uma única vez, na sua quinta de Sintra frente ao palácio dos Seteais, e o Duarte nunca cheguei a conhecer senão por conversas das quais guardo unicamente o seu pendor por práticas financeiras e prestigiado presidente do Benfica.

Dos três filhos do último Marquês da Praia, só o primo António Praia me lembro a viver em São Miguel, era eu pequeno, e depois só de passagem quando cá vinha em relativamente breves estadias.

A sua expressão muito característica na comunicação que estabelecia com os seus interlocutores impressionava-me e guardo boa memória dos desafios que continha.

Aos filhos, e às filhas que depois foram nascendo, preocupou-se em proporcionar-lhes a melhor instrução. Da geração seguinte, e que seja do meu conhecimento, a neta Joana distingue-se pela estruturada formação científica e a perfeição das suas iniciativas e realizações. Veja-se a harmoniosa organização da Quinta do Bom Despacho, casa, jardins, encantadora piscina natural, múltiplos espaços culturais e recreativos, num tão bem concebido quanto bem executado empreendimento de educação ambiental e eco-turismo.

O primo António Praia abriu sempre a sua casa a todos quantos mostrassem interesse científico e político e fossem dotados intelectualmente.

O convívio no palácio Praia em Ponta Delgada e na sua casa do Estoril guarda[1]se seguramente na memória de quem com ele privou mais de perto.

Nele manteve-se o culto pela cultura e pela acção que foram timbre das distintas gerações que o precederam.

É importante destacar que tanto Duarte Borges, 1º visconde, como o filho António, 1º marquês, estudaram no continente e tiveram presença e envolvimento económico e político de algum relevo na vida nacional, quer como intervenientes directos quer indirectamente pela pertença à elite social da época.

Tenho muita pena do que aconteceu em Ponta Delgada, primeiro com a expropriação de parte do jardim para construção do chamado Palácio da Justiça, inaugurado em 1968, projecto do arquitecto micaelense Eduardo Read Teixeira, obra que custou 6 mil contos tendo a Câmara Municipal de Ponta Delgada recorrido a um empréstimo junto da Caixa Geral de Depósitos no valor de 3 mil contos para a expropriação do terreno, e, mais recentemente, com a aquisição do resto do jardim e do edifício de habitação para funcionamento do Tribunal da Comarca dos Açores. O edifício foi grosseiramente adulterado, sob cobarde e venal licenciamento da Câmara Municipal de Ponta Delgada, tanto no interior, que foi ignobilmente vandalizado nas suas estruturas originais, como no exterior, onde a ornamentação da platibanda no alçado principal foi pura e simplesmente eliminada.

A propósito das autoridades que deviam preservar mas que licenciam o aviltamento e mesmo a destruição de património de referência que devia ser salvaguardado devo dizer que quando o Francisco Nunes me veio falar e propor que participasse com o meu depoimento nesta homenagem ao primo António Praia e me disse o local da sua realização a minha primeira reacção foi “no Museu não! Que nele não ponho os pés”.

Não estou a fugir ao assunto que aqui nos traz, como já poderão perceber.

Mas voltando ao que estava a dizer, transigi quando me referiu que ficaríamos na zona do claustro, supostamente não desvirtuada.

É que o Museu Carlos Machado é um caso paradigmático da boçalidade e do atrevimento duma corja inculta e presunçosa que tomou o freio nos dentes do posso quero e mando em bajuladas tonsuras autoritárias. A destruição e macaqueação que foi feita numa das mais preciosas evidências arquitectónicas e vivenciais do antigo regime, estou-me a referir ao Recolhimento de Santa Bárbara, é um abjecto atentado ao conhecimento histórico e uma perda odiosa e frustre aos nossos sentidos. Mas também no Convento de Santo André o que está a ser feito ou que ter-se-á já realizado não ficará atrás em vileza. E é pena pois neste caso trata-se de macular um conjunto de elevado primor construtivo.

À ignara indiferença ou mesmo insídia pequeno burguesa pena é não lhe dar o que ao sapo invejoso da grandeza do boi aconteceu. Com isso evitava-se a perversa destruição de coerentes complexos constituídos e esmeradas realizações operárias.

Mas da venal petulância e astuta falsidade pequeno burguesas o primo António Praia nada tinha pois que eu saiba nunca vergou nem ao despotismo concentracionário da ditadura nem à servidão canina de António Oliveira Salazar pelo selecto punhado de magnatas da indústria & finança sacralizado em Portugal que ele promoveu.

A República em Portugal tem sido fértil em grandes equívocos políticos, o que se compreende se se atender ao facto de se ter implantado quando já havia no país indústria moderna e cultura operária adentro dos últimos anos da monarquia constitucional.

A I república é expressão desses equívocos com tão temerárias como imprudentes lutas, como foi o caso do anti-clericalismo como princípio e não como circunstância no âmbito das decisões políticas.

O resultado foi a inequívoca ditadura da II República. O equívoco ficou assim não na forma mas no conteúdo que a forma perverteu e exacerbou de tal modo que a ditadura precisou de criar, para sobreviver, um tão eficaz quanto brutal aparelho de intimidação e de coacção em violento exercício sobre a população portuguesa.

A III República está a ganhar aos pontos à I e à II República tanto em tempo como em equívocos e está ainda para ver se também em temor e em terror.

O grande equívoco da III República é a democracia, desesperadamente burguesa, numa sociedade em que 95% da população em maioridade é proletária, proletarizada ou em vias de proletarização, isto é, esbulhada quanto baste de tudo quanto possa ser chamado de seu, inclusive da força de trabalho de que virtualmente poderia dispor como coisa sua.

Mas será interessante atendermos, de novo, ao Dr Borges Coutinho.

Gaspar Dias foi um mercador, um rico mercador. Gaspar Dias esteve na fronteira temporal da transformação do dinheiro em capital, da acumulação de numerário originada pelo comércio na primeira mundialização no planeta Terra possibilitada pelas navegações intercontinentais do século XVI.

O testemunho de Gaspar Frutuoso é a muitos títulos surpreendente porquanto nos transporta com singular precisão para actos e pensamentos nessa completamente nova época da representação do mundo. Descrevendo a vida no início do povoamento em esta ilha de São Miguel, atente-se ao comentário dele quando referia que de uma ida ao mato podia trazer-se cestos cheios de ovos das galinhas que nele viviam livres de qualquer constrangimento humano, tantos, dizia, que nem tinham preço. Era já o confronto entre a economia monetária da escassez que se veio a instalar e uma primeira economia da fartura sem dinheiro.

Gaspar Dias não só administrou e granjeou fortuna como vinculou bens numa lógica económica típica do antigo regime e que foram sendo acrescentados ao longo das gerações seguintes até uma situação de confronto com essa economia.

Esse confronto, protagonizou-a Duarte Borges, ao apoiar a causa constitucional afrontando a reacção absolutista defensora do estatuto da nobreza hereditária e da aristocracia do alto clero.

Duarte Borges foi um dos financiadores da formação do exército nos Açores e do transporte dessa força militar para o território continental em defesa da causa da infanta e futura rainha D. Maria II. Durante o conflito liderado pelos dois filhos de D João VI a ilha Terceira foi a única parcela do território português onde a soberania de D Miguel I nunca se exerceu.

A definitiva vitória constitucional após muitos avanços e recuos, não é mais do que um dos momentos fulcrais da revolução burguesa em Portugal, o da vitória política e militar que pôs fim ao sangrento e breve reinado de D. Miguel entre 1828 e 1834.

Limitar o número de instituições vinculares era já preocupação desde a segunda metade do século XVIII. No decreto de Abril de 1835, elaborado por Mouzinho da Silveira, contesta-se formalmente a existência dos morgadios. Mas só em 1863 há a sua abolição, permitindo a transação de bens fundiários livres dos constrangimentos e obrigações instituídas “até ao fim dos tempos”. Junto com a nacionalização dos bens da igreja, o fim dos morgadios foi uma decisiva vitória económica da burguesia portuguesa.

Para alguns morgados, como foi o caso de Duarte Borges, o fim dos morgadios foi uma oportunidade para fazer crescer significativamente o seu património, coisa impossível se se mantivesse a multiplicidade de obrigações vinculadas por mil e uns diferentes instituidores.

Se no século XVI a acumulação de numerário possibilitou a gradual transformação do dinheiro em capital, foi com a revolução burguesa vitoriosa, já nos séculos XIX e XX, que tal desiderato efectivamente se concretizou ao universalizar a monetarização no processo produtivo e distributivo.

O ajoelhado beija-mão dos camponeses que tanto impressionou o primo António Praia em criança aquando da vinda a São Miguel com o pai, e que Carlos Enes testemunha ao falar de Borges Coutinho no seu livro “A Oposição Democrática em Ponta Delgada” é uma manifestação típica da relação servil anterior à revolução burguesa e, como muito bem infere Carlos Enes, objecto de liminar rejeição por parte de António Borges Coutinho.

O comportamento político do primo António Praia é antes de mais e acima de tudo de repulsa por relações de submissão e de poder medievais, prévios à revolução burguesa e cuja perpetuação repudiou.

O empenho pelo desenvolvimento das forças produtivas locais ao dispor para o efeito da maior propriedade fundiária familiar foi expressão da sua vontade em romper com os resquícios do passado de senhorio e de vassalagem ainda existentes. O projecto do Altiprado na Achada das Furnas integrou propriedade fundiária e propriedade industrial numa produção primária agro-pecuária em parceria com a Fábrica de Lacticínos Loreto, projecto que validou até ao fim da vida, mesmo depois do bloqueio e alienação daquela indústria regional.

Não estava em São Miguel na altura das eleições de 1969 para a Assembleia Nacional e pouco mais conheço, para além do que está publicado, da oposição democrática em Ponta Delgada, de que António Borges Coutinho foi decisivamente parte activa. A edição pelas Letras Lavadas de “A Oposição Democrática em Ponta Delgada – das Eleições de 1969 à Cooperativa Sextante”, do historiador Carlos Enes permite uma visão dos acontecimentos e anexa os documentos mais expressivos tanto da Oposição Democrática como da União Nacional.

 A Declaração de Ponta Delgada, a Carta ao Povo de São Miguel e Santa Maria e o Manifesto da Comissão Democrática Eleitoral são expressão de unidade e luta de contrários nos 226 subscritores, comerciantes, estudantes, operários, advogados, camponeses, funcionários públicos, etc., quer no que expectam quer consequentemente no porque subscrevem os documentos postos no domínio público.

Na Declaração de Ponta Delgada estão patentes não só questões do âmbito dos direitos, garantias e liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão, que não existia, do pensamento e da sua difusão, que não existia, a liberdade de reunião e de associação, que também não se tinha, assim como a exigência da amnistia e libertação dos presos políticos, reivindicação fundamental e que decorria dos negados direitos anteriormente exigidos; estão também questões relativas ao desenvolvimento económico e à promoção humana e social, particularizando o que na altura se enunciava como de especificidades prementes no Distrito decorrentes do baixíssimo nível de vida da esmagadora maioria da população, subalimentação generalizada, condições infra-humanas de habitação, impossibilidade de acesso a uma assistência médica eficiente; ainda na problemática distrital propugnava-se por uma profunda reforma do Estatuto de Autonomia - das Ilhas Adjacentes, como se dizia nessa altura.

Na elaboração de todos esses documentos assim como na apresentação pública nos em muitos casos entusiásticos encontros nas freguesias rurais e nos comícios urbanos o primo António teve uma presença por todos unanimemente destacada, quer como orador quer no fazer frente às autoridades administrativas e policiais nas suas tentativas de intimidar pessoas e impedir realizações de campanha.

Como governador civil desconheço a sua acção. Ignoro também quando foi nomeado para o cargo. Sei unicamente que foi demitido na sequência das manifestações a 6 de Junho de 1975. Ao contrário do que acontece para as eleições de 1969, não encontro documentação elucidativa.

A propósito da sua destituição, refiro a presença de parentes de Borges Coutinho, pessoas da sua geração, integrando a manifestação mas preparados para defendê-lo no caso de haver tentativas de agressão ou mesmo de assassínio. O Visconde da Praia teve só um filho, que o sucedeu na posse e administração dos bens, mas teve seis filhas, quatro delas com geração, sendo hoje muitos os seus descendentes.

Do que me lembro, porque estava cá, tinha eu já onze anos, é de quando o primo António foi preso, em 1961, e não esqueço a ferocidade cínica da PIDE.

Uma verdadeira III República, como se sonhava e na Declaração de Ponta Delgada se proclamava, vivemo-la hoje. Mas, como é óbvio, não foi nem poderia ser uma III República como a que temos o nó górdio da perseguida solução.

Alexandre o Grande resolveu o nó cortando-o com a espada.

Também só uma mudança de paradigma poderá permitir a procurada solução.

Não sei quem o afirmou, mas seguramente não é recorrendo aos métodos que dão origem a um problema que o problema pode ser resolvido.

A revolução burguesa de que Duarte Borges foi parte activa foi uma mudança radical de paradigma, de paradigma económico, político, social, sendo a ordem prévia eliminada e estabelecida a nova ordem. O que eram relações escravo[1]servo-senhor na reprodução da vida transformou-se em produção entre iguais pela lei mas desiguais na propriedade, pois têm-na uns na sua força de trabalho e outros no onde e no como essa força de trabalho se exerce.

A chamada revolução do 25 de Abril nada mudou quanto àquilo que está na origem dos principais problemas sociais, políticos e económicos vividos – e agravados - no dia a dia de hoje, problemas não especificamente portugueses, mas comuns praticamente a todos os povos do mundo como à evidência a comunicação social o demonstra.

Na reacção miguelista o problema estava na abolição da nobreza de sangue, na abolição do direito divino do rei, na abolição da escravatura e na abolição da servidão que a bandeira da “fraternidade, igualdade e liberdade” proclamava desde a revolução francesa.

A reacção actual é à abolição do direito do proprietário do onde e do como se exerce a força de trabalho pôr e dispor soberana e discricionária dos proprietários que detêm o que faz mover o mundo.

Mas estamos mais próximo, do que estávamos em 1969, da negação da negação e da quantidade transformada em qualidade - Hegelianas.

Tem, pois, a exacerbada reacção absolutista nos primórdios do século XIX, o seu equivalente reaccionário hoje numa não menos sangrenta persistência de métodos e paradigmas sem ponta por onde se lhe pegar quer em consistência quer em funcionalidade. Expressão disso é o barbarismo de parte a parte na iníqua e brutal guerra na Ucrânia, em Gaza, na Síria, no Sudão, com Macrons, Putins e quejandos a fazer contas ao negócio em milhões de mais-valia a alimentar-lhes amoedação.

Casas, hospitais, fábricas, escolas, em escombros, mutilados corpos, fossas comuns para amontoação de cadáveres, isso, soberanos senhores e soberanas senhoras, isso são líricas fantasias de quem não tem mais que fazer: é que real, real, só o dinheiro contado.

Duvidais?

Se sim, olhai-vos... olhos nos olhos!

 

 

Museu Carlos Machado 31 de Maio de 2024,

 

Pedro Pacheco

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